O Homem não deve perguntar qual o sentido da sua vida, mas ele deve perceber que é a vida é que o pergunta." (Viktor Frankl)

terça-feira, 2 de agosto de 2016

A fé conforta? – A Angústia de ser cristão

I

Um dos principais argumentos que encontro de pessoas agnósticas ou ateias que querem interpretar a fé cristã (na verdade a fé em geral) é que a fé em um mundo além nos conforta das mazelas desse mundo em que vivemos.

 Não tenho nenhuma dúvida referente a esse conforto diante de catástrofes e perdas pessoais que trazem, de alguma forma, um sentido ao sofrimento.

           No entanto, há outro lado da fé que nada tem a ver com consolo e que está muito mais presente no cotidiano cristão do que o consolo: a angústia. O consolo só é necessário em nossas vidas na medida em que algo ruim nos assola, mas quando tudo vai bem e temos a sensação de que algo nos falta isso já não é mais consolo; é angústia.

II

 Aquela ausência de algo que sabemos ou não sabemos o que é ou que, na verdade, podemos achar que sabemos do que se trata para descobrir, então,  que não se tratava tanto daquilo.

Albert Schweitzer que foi o maior interprete de Bach de seu tempo e abandonou sua carreira quando estava no ápice para mudar-se à África para cuidar de pessoas em situação de risco sendo que seu primeiro consultório foi improvisado em um galinheiro; Paul Brand cuidou de leprosos na Índia por toda sua vida. Foi dele a descoberta que a hanseníase não causava o apodrecimento dos tecidos, mas a perda de sensibilidade. Mais tarde ele escreveu com Philip Yancey o livro A Dádiva da Dor onde ele faz uma analogia entre a importância da dor na alma humana comparando com o sofrimento de seus pacientes gerado exatamente pela falta de dor que tinham e que, por causa disso, se mutilavam.

III

A ideia de uma fé que somente consola não me é simpática. Não passa, a meu ver, de um sintoma de nossa geração onde tudo deve contribuir para fazer nossa vida prosaica. Compramos porque nos alivia o desejo de consumo; não porque precisamos, fazemos sexo para aliviar nosso desejo de prazer; não porque queremos intimidade. Toda ética de nosso tempo está baseada no desejo por uma ilusão e com a fé não poderia ser diferente, pois essa ética refletiu dentro da igreja. Ter fé é deixar que Deus nos alivie e ao mesmo tempo me garantir que possua minhas ilusões.  

Do lado dos que nos analisam de fora essa parece ser toda a realidade da fé. É uma maneira mais educada de dizer que os que têm fé buscam esse placebo travestido de metafísica que não resolve nada, mas no fim das contas alivia o estresse de pessoas frustradas com a realidade material da vida.

O erro dessa interpretação está no fato de que ela se resume a um período da história, mas se formos um pouco mais longe, nos primórdios do cristianismo, onde os cristãos eram perseguidos pelo império romano e a maioria de seus seguidores era gente simples que por declararem abertamente sua fé em Cristo eram desterradas, expulsas de suas cidades e levadas ao martírio. A fé nesse caso não lhes aliviava o sofrimento; o acentuava. Assim a mesma fé que oferecia o consolo na hora do sacrifício era a mesma que levava essas pessoas às arenas de execução. Em outras palavras, o erro de algumas interpretações está não em enxergar o que não existe, mas em transformar um aspecto de algo em sua totalidade, ofuscando todos os outros aspectos.

IV

A fé cristã, se bem compreendida, nos levará à fronteira de um paradoxo de pessimismo (velha criatura) e otimismo (nova criação). Esse paradoxo não nos permite um otimismo ilusório que perde a raiz trágica de nossa existência, nem do pessimismo rabugento e tolo porque apesar de nossa tragédia humana há diante de um reino que nos espera e dentro de nós um espírito que nos impulsiona adiante. Mas como nem reino nem nova criação são realidades plenas a fé cristã nos marca com uma angústia incurável porque de alguma maneira somos o que ainda não somos e participamos de um reino que ainda não podemos participar em plenitude. Por isso Paulo pode angustiar-se e ainda descrever aos romanos essa angústia de que ainda não podia ele fazer o que queria e ainda por cima fazia o que não queria de tal maneira que com a mente servia a lei e com o corpo o pecado. É esse paradoxo que Aliócha, personagem de Dostoievski de Os Irmãos Karamazov,  que dedica sua vida a viver retirado em um mosteiro da Rússia, tem um diálogo com um de seus irmãos que justifica sua depravação afirmando que há nele o ideal da Madona  (alusão à pureza de Maria), mas que sua realidade interna é a de um inseto (alusão à falta de moralidade e ao domínio total dos instintos naturais). O jovem Aliócha, para surpresa do irmão, afirma que ele é exatamente assim, com a diferença que não havia se rendido à vida de inseto.

É desse ideal que nasce a angústia que deve mover o cristão. A fé que não nos permite viver com base somente de nossos desejos, mas que os confronta com a ideal de santidade que aqui significa muito mais do que santidade em aspecto da moral privada. Maria, pelo menos para os protestantes, foi virgem para conceber Jesus, mas teve outros filhos naturalmente. O ideal da Madona é, então, a vida completamente dedicada a Deus e ao próximo e fazer do próprio corpo esse instrumento de serviço.

Nas palavras de Paulo, “Porque o amor de Cristo nos constrange, julgando nós assim: que, se um morreu por todos, logo todos morreram. E ele morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais para si, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou”. (2 Coríntios 5:14,15). Não viver para si, mas para aquele que por nós morreu é sacrificar nossa agenda de vida pela agenda dele. A partir de agora não importa meus desejos; mas o dele, não importa meus planos; mas o dele, não importa é fácil ou impossível amar alguém; mas que ele nos mandou amar até os nossos inimigos, se queremos ou não perdoar; mas que perdoemos setenta vezes sete, se queremos ou não ajudar ao próximo; mas que se não o ajudamos não temos parte com ele.

V
A morte de uma pessoa querida acontece ou acontecerá muito menos do que nosso cotidiano onde nossa nova realidade (viver para ele) está à prova. Em outras palavras, na fé cristã há menos consolo e mais aflição. Isso porque o núcleo de nossa fé é “amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos”. Amar a Deus sobre todas as coisas significa que Ele deve ser o centro de nossa existência e como centro, nele organizamos todas as coisas de nossa vida. Deus só pode ser Deus se Ele é mais importante e maior do que todas as coisas, mas eu só compreendo esse Deus se, junto, compreendi que eu e o próximo temos a mesma importância diante dele. Não há como amar a esse Deus e odiar ao próximo, quem crê assim é mentiroso (1 Joao 4:20). É mentiroso porque Deus é amor e, assim sendo, a ação dos que o servem é uma reação de amor porque esse Deus-amor é o centro de nossa existência.


Cada dia eu descubro mais angústia na fé cristã e cada dia luto para que essa nova criatura vença esse inseto que vive em mim, cada dia descubro que ser cristão – cristão de fato –   não é fácil e cada dia descubro que essa angústia é uma benção de Deus que acompanha todos os que querem esse algo mais que nos falta e que está em Cristo por quem seremos em plenitude quando tudo estiver consumado. Até lá, que a ausência do que deveríamos ser nos ajude a ser.

A fé conforta? – A Angústia de ser cristão

I

Um dos principais argumentos que encontro de pessoas agnósticas ou ateias que querem interpretar a fé cristã (na verdade a fé em geral) é que a fé em um mundo além nos conforta das mazelas desse mundo em que vivemos.

 Não tenho nenhuma dúvida referente a esse conforto diante de catástrofes e perdas pessoais que trazem, de alguma forma, um sentido ao sofrimento.

           No entanto, há outro lado da fé que nada tem a ver com consolo e que está muito mais presente no cotidiano cristão do que o consolo: a angústia. O consolo só é necessário em nossas vidas na medida em que algo ruim nos assola, mas quando tudo vai bem e temos a sensação de que algo nos falta isso já não é mais consolo; é angústia.

II

 Aquela ausência de algo que sabemos ou não sabemos o que é ou que, na verdade, podemos achar que sabemos do que se trata para descobrir, então,  que não se tratava tanto daquilo.

Albert Schweitzer que foi o maior interprete de Bach de seu tempo e abandonou sua carreira quando estava no ápice para mudar-se à África para cuidar de pessoas em situação de risco sendo que seu primeiro consultório foi improvisado em um galinheiro; Paul Brand cuidou de leprosos na Índia por toda sua vida. Foi dele a descoberta que a hanseníase não causava o apodrecimento dos tecidos, mas a perda de sensibilidade. Mais tarde ele escreveu com Philip Yancey o livro A Dádiva da Dor onde ele faz uma analogia entre a importância da dor na alma humana comparando com o sofrimento de seus pacientes gerado exatamente pela falta de dor que tinham e que, por causa disso, se mutilavam.

III

A ideia de uma fé que somente consola não me é simpática. Não passa, a meu ver, de um sintoma de nossa geração onde tudo deve contribuir para fazer nossa vida prosaica. Compramos porque nos alivia o desejo de consumo; não porque precisamos, fazemos sexo para aliviar nosso desejo de prazer; não porque queremos intimidade. Toda ética de nosso tempo está baseada no desejo por uma ilusão e com a fé não poderia ser diferente, pois essa ética refletiu dentro da igreja. Ter fé é deixar que Deus nos alivie e ao mesmo tempo me garantir que possua minhas ilusões.  

Do lado dos que nos analisam de fora essa parece ser toda a realidade da fé. É uma maneira mais educada de dizer que os que têm fé buscam esse placebo travestido de metafísica que não resolve nada, mas no fim das contas alivia o estresse de pessoas frustradas com a realidade material da vida.

O erro dessa interpretação está no fato de que ela se resume a um período da história, mas se formos um pouco mais longe, nos primórdios do cristianismo, onde os cristãos eram perseguidos pelo império romano e a maioria de seus seguidores era gente simples que por declararem abertamente sua fé em Cristo eram desterradas, expulsas de suas cidades e levadas ao martírio. A fé nesse caso não lhes aliviava o sofrimento; o acentuava. Assim a mesma fé que oferecia o consolo na hora do sacrifício era a mesma que levava essas pessoas às arenas de execução. Em outras palavras, o erro de algumas interpretações está não em enxergar o que não existe, mas em transformar um aspecto de algo em sua totalidade, ofuscando todos os outros aspectos.

IV

A fé cristã, se bem compreendida, nos levará à fronteira de um paradoxo de pessimismo (velha criatura) e otimismo (nova criação). Esse paradoxo não nos permite um otimismo ilusório que perde a raiz trágica de nossa existência, nem do pessimismo rabugento e tolo porque apesar de nossa tragédia humana há diante de um reino que nos espera e dentro de nós um espírito que nos impulsiona adiante. Mas como nem reino nem nova criação são realidades plenas a fé cristã nos marca com uma angústia incurável porque de alguma maneira somos o que ainda não somos e participamos de um reino que ainda não podemos participar em plenitude. Por isso Paulo pode angustiar-se e ainda descrever aos romanos essa angústia de que ainda não podia ele fazer o que queria e ainda por cima fazia o que não queria de tal maneira que com a mente servia a lei e com o corpo o pecado. É esse paradoxo que Aliócha, personagem de Dostoievski de Os Irmãos Karamazov,  que dedica sua vida a viver retirado em um mosteiro da Rússia, tem um diálogo com um de seus irmãos que justifica sua depravação afirmando que há nele o ideal da Madona  (alusão à pureza de Maria), mas que sua realidade interna é a de um inseto (alusão à falta de moralidade e ao domínio total dos instintos naturais). O jovem Aliócha, para surpresa do irmão, afirma que ele é exatamente assim, com a diferença que não havia se rendido à vida de inseto.

É desse ideal que nasce a angústia que deve mover o cristão. A fé que não nos permite viver com base somente de nossos desejos, mas que os confronta com a ideal de santidade que aqui significa muito mais do que santidade em aspecto da moral privada. Maria, pelo menos para os protestantes, foi virgem para conceber Jesus, mas teve outros filhos naturalmente. O ideal da Madona é, então, a vida completamente dedicada a Deus e ao próximo e fazer do próprio corpo esse instrumento de serviço.

Nas palavras de Paulo, “Porque o amor de Cristo nos constrange, julgando nós assim: que, se um morreu por todos, logo todos morreram. E ele morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais para si, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou”. (2 Coríntios 5:14,15). Não viver para si, mas para aquele que por nós morreu é sacrificar nossa agenda de vida pela agenda dele. A partir de agora não importa meus desejos; mas o dele, não importa meus planos; mas o dele, não importa é fácil ou impossível amar alguém; mas que ele nos mandou amar até os nossos inimigos, se queremos ou não perdoar; mas que perdoemos setenta vezes sete, se queremos ou não ajudar ao próximo; mas que se não o ajudamos não temos parte com ele.

V
A morte de uma pessoa querida acontece ou acontecerá muito menos do que nosso cotidiano onde nossa nova realidade (viver para ele) está à prova. Em outras palavras, na fé cristã há menos consolo e mais aflição. Isso porque o núcleo de nossa fé é “amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos”. Amar a Deus sobre todas as coisas significa que Ele deve ser o centro de nossa existência e como centro, nele organizamos todas as coisas de nossa vida. Deus só pode ser Deus se Ele é mais importante e maior do que todas as coisas, mas eu só compreendo esse Deus se, junto, compreendi que eu e o próximo temos a mesma importância diante dele. Não há como amar a esse Deus e odiar ao próximo, quem crê assim é mentiroso (1 Joao 4:20). É mentiroso porque Deus é amor e, assim sendo, a ação dos que o servem é uma reação de amor porque esse Deus-amor é o centro de nossa existência.


Cada dia eu descubro mais angústia na fé cristã e cada dia luto para que essa nova criatura vença esse inseto que vive em mim, cada dia descubro que ser cristão – cristão de fato –   não é fácil e cada dia descubro que essa angústia é uma benção de Deus que acompanha todos os que querem esse algo mais que nos falta e que está em Cristo por quem seremos em plenitude quando tudo estiver consumado. Até lá, que a ausência do que deveríamos ser nos ajude a ser.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Perder para ganhar



"Vocês ouviram o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente’. Mas eu lhes digo: Não resistam ao perverso. Se alguém o ferir na face direita, ofereça-lhe também a outra. (Mateus 5:38–39).

********

A vida cristã é algo sério, ou pelo menos deveria sê-lo para os cristãos, porque o breve tempo que temos – no máximo oito ou nove décadas – é o único momento que teremos para saber como se vive. Não aprendemos a viver antes de nascer e por isso mesmo aprendemos a viver enquanto vivemos. Esse é o nosso drama.

            O “problema” da vida, por assim dizer, é que nascemos em um corpo e em mundo. Não nascemos sós, somos limitados por nosso próprio corpo – incluindo nosso cérebro – e por nosso mundo. Nascemos em companhia de um corpo biologicamente condicionado e em um mundo que já existia – e já tinha seus costumes – antes de nós.

Os versículos que sobre os quais escrevo são um desafios para ambos: corpo e mundo. Sabemos que o corpo só não reage a uma agressão pelo medo de uma agressão maior. Sabemos também que o mundo de quem é agredido e não pode reagir fica limitado ao espaço que nossos agressores nos impõem. Esse texto parece legitimar o agressor e as limitações que suas violências nos trazem. Parece, mas não é assim.

A vida é, também, uma reação aos estímulos que sofremos. São eles os responsáveis por nossas ações e o texto nos pergunta exatamente por isso: Quem – ou o que - estimula nossas ações.

Em um primeiro momento nos parece que reagir ao agressor com outra agressão que o limite de ter poder sobre nossas vidas é o comportamento correto, mas o que o evangelho de Cristo nos ensina é que além do agressor em si – a pessoa, a instituição, etc. – há uma subjetividade da agressão que se manifesta por esse canal que agride. Assim, pode-se dizer, que todo agressor é somente um meio pelo qual se manifesta a agressão. Então, se o agredido reagir com outra agressão ele perderá, ainda que vença ao agressor. A agressão – que aqui é somente um exemplo mais específico de qualquer mal – apenas continuou a manifestar-se, ainda que agora por meio da vítima que antes sentia-se ofendida por sentir o mal e que agora o promove.

Creio que é por isso que vítimas que se rebelam mostram um lado muitas vezes mais sombrio do que o do próprio agressor que limitava seu mundo. A agressividade usada para vencer o inimigo do qual era vítima se expandiu e se transformou em seu próprio mundo. A agressão venceu.

É exatamente por isso que o cristão não deve reagir ao mal; sua reação tem outra fonte: a cruz de Cristo, “onde Deus estava reconciliando, por meio de Cristo, o mundo consigo”. Isso não fará dele uma pessoa apática, mas alguém que terá seu mundo expandido a partir de Deus e se Deus é a quem ele reage, seu mundo será expandido pelo que Deus é. Certamente que não o será em plenitude, mas de alguma forma Deus se manifestará em seu cotidiano. Manifestar-se-á, inclusive, ao seu inimigo.

 Justino Mártir, um dos primeiros apologistas – do tempo em que valia a pena ler os apologistas – que chegou até nós, no século II da era cristã, viveu em um tempo onde os cristãos estavam sendo massacrados pelo império romano. Em uma carta ao imperador ele diz o seguinte:

Antes nos comprazíamos na dissolução; agora abraçamos a temperança, antes nos dedicávamos à magia; agora ao Deus bom, antes amávamos nosso dinheiro e bens mais do que tudo; agora compartilhamos com os necessitados, nos odiávamos mutuamente, nos matávamos e não compartilhávamos nosso lar com os que não pertenciam a nossa raça  ou costumes; agora, depois de Cristo aparecer, vivemos todos juntos, oramos por nossos inimigos e tratamos de persuadir aos que nos perseguem injustamente.

            A carta não adiantou, Justino seria martirizado alguns anos mais tarde. O estado romano foi o canal pelo qual o mal se manifestou e tirou sua vida em um julgamento em que ele já entrou condenado no tribunal somente pelo fato de ser cristão. Pela lógica do poder ele perder; pela lógica do evangelho ele venceu da mesma maneira que Paulo e outros venceram.


            Para a fé cristã, a vida deve ser vivida a partir do evangelho e devemos crer que somente dessa maneira o mundo pode ser transformado de maneira correta. Ouvi uma vez um pastor que fazia o casamento de uma amiga dizer: “O mundo já passou muitas revoluções; mas nunca experimentou a revolução de um amor verdadeiro”. Ele estava correto. Mas ainda que o mundo não chegue a ser transformado, nosso mundo certamente será diferente, porque nossa vida será vivida a partir de Deus.

terça-feira, 19 de abril de 2016

Qual o problema dos deputados evangélicos que falam em nome de deus, família e tudo mais?



Tenho dito que me sinto um estranho no ninho evangélico brasileiro e pensando bem isso é muito bom. Sentir-se estranho em meio um movimento dentro do cristianismo que conseguiu ter como suas maiores referência Silas Malafaia, Edir Macedo e Valdemiro Santiago é no mínimo um alívio moral, mas não se trata somente da moralidade em si (nem preciso ser cristão para isso), mas da centralidade da mensagem cristã para a vida.

Desde minha conversão tenho escutado um mantra repetido dentro da igreja: “Vamos ganhar o Brasil para Cristo”. Como? De todas as maneiras, mas nenhuma tão especial como a política. Teríamos, escutei diversas vezes, que eleger irmãos em Cristo como vereadores, prefeitos, deputados, governadores, senadores e – esse é o posto mais cobiçado – presidente. Quando isso acontecesse teríamos, enfim, um país cristão porque os políticos controlam as leis e executam seus projetos na sociedade. Em outras palavras, o Brasil se tornaria cristão por meio da igreja que controlaria o estado em todos seus níveis. É claro que as coisas não são fáceis e na ausência de um irmão como nosso representante (representante de Deus, na verdade) deveríamos votar em políticos que fossem amigos dos evangélicos e não atacassem nossos princípios, além de favorecê-los.

Essa esperança, no entanto, não é cristã.

A crença de que Deus guia seu povo por meio da lei pode ser judaica, mas não é cristã exatamente porque falta o pessimismo antropológico, esse sim, notadamente cristão. Ninguém expressa mais isso do que Paulo em suas cartas e não foi por menos que ele teve sérios problemas com os chamados judaizantes que defendiam uma observância restrita da lei também por gentios. Paulo luta ardentemente contra essa religiosidade baseada na lei e expressa seu motivo como está abaixo:
“Portanto, ninguém será declarado justo diante dele baseando-se na obediência à lei, pois é mediante a lei que nos tornamos plenamente conscientes do pecado. Mas agora se manifestou uma justiça que provém de Deus, independente da lei, da qual testemunham a Lei e os Profetas, justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo para todos os que creem. Não há distinção, pois todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente por sua graça, por meio da redenção que há em Cristo Jesus.
Romanos 3:20-24
            Se você não compreendeu bem leia outra vez, releia uma, duas, três, mil vezes se necessário. Leia até entender o que o texto quer dizer e esqueça-se, por um momento do que os livros devocionais e seus pastores dizem. Leia como bom protestante que acredita que o que importa é Sola Scriptura. Esforce-se um pouco mais porque tua leitura pode estar condicionada pelo meio em que está. Vou transcrever em fontes maiores: “ninguém será declarado justo diante dele baseando-se na obediência à lei, pois é mediante a lei que nos tornamos plenamente conscientes do pecado.

            Em outras palavras, você pode crer em Deus, na família, na moral e nos bons costumes, mas sua realidade diante de Deus é exatamente a mesma de um ateu sadomasoquista e que, além disso, é traficante.

Não, não estou defendendo traficantes, nem sadomasoquistas, nem mesmo dizendo que cristãos não precisem de moralidade. O que quero dizer é que nossa situação diante de Deus (que é a única situação que importa de verdade para o cristão) é muito ruim. Ainda que não cometamos nenhum ato torpe, nossa torpeza se manifesta até mesmo em nossa “bondade”. Para citar Bonhoeffer em sua Ética: o bem e o mal do homem são bem e mal contra Deus. Sendo mais específico, até nossa bondade é ruim porque sempre termina pervertendo o Bem. Ele escreveu isso em meio uma Alemanha onde os nazistas conseguiam mais e mais simpatizantes em nome de um bem.

Não é difícil achar evangélicos (católicos também, mas quero delimitar o que escrevo) que se acham melhores, que gargalham de prazer ao ouvir as declarações misóginas, sexistas, racistas e violentas de Bolsonaro, o mesmo deputado inimigo dos comunistas que querem fechar as igrejas brasileiras e obrigar seu filho a ser gay. É muito fácil encontrar evangélicos que se deliciam com os berros de Silas Malafaia referindo-se aos seus adversários políticos como “essa gente”, etc. Mas isso tudo não é novidade, nos Estados Unidos, Billy Sunday, famoso evangelista do século XIX, declarou que a deportação de subversivos era muito suave e custaria muito aos cofres do país, em lugar disso sugeriu uma execução em massa; a Ku Klux Klan é até hoje uma organização que só aceita protestantes e em seu ápice contava com vários pastores e diáconos evangélicos. Frank Buchman do Movimento de Oxford observou em um momento: “Agradeço aos céus por um homem como Adolf Hitler, que construiu uma linha de defesa contra o anticristo do comunismo”. Em comum com todos esses pastores, líderes e evangelistas estava o combate ao comunismo (Não, não estou defendendo o comunismo, contra o qual tenho pesadas críticas. O que não quer dizer que eu defenda o neoliberalismo). Além disso, todos se criam guardiões da fé e da moral ou como li em certo livro devocional: a pureza é uma donzela em perigo que deve ser defendida pela igreja. Desculpe, sou cristão demais para acreditar em pureza e na igreja como sua guardiã. Compreendo que a impureza (ou perversão) é algo inato ao ser humano e à igreja, ou se esqueceram que todas as pastorais no Novo Testamento são direcionadas a igrejas problemáticas.

Paulo completa escrevendo que Não há distinção, pois todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente por sua graça, por meio da redenção que há em Cristo Jesus.

Outra vez: não há distinção (os evangélicos se encontram no mesmo saco) e só por meio da graça que somos redimidos. Introdução à fé cristã. Você não é um bêbado cambaleando, um traficante de drogas, um pervertido sexual, etc.? Que bom, agradeça a Deus e saiba que isso não melhora sua situação diante de Deus.

A mensagem cristã não deixa nenhuma possibilidade de vaidade para nenhuma pessoa. Seja você crente ou ateu. Não deixa nenhuma margem de interpretação para nos pensarmos superiores a qualquer pessoa, inclusive àquelas que você acha que são desprezíveis (Eduardo Cunha por exemplo). Por isso a mensagem cristã nos ensina a amar nossos inimigos (não é amá-los se deixarem de ser inimigos e se transformarem em aliados), a orar pelos que nos perseguem, a ajudar pessoas esfoladas à beira do caminho, a crer em um Deus que faz a chuva cair sobre bons e maus. No moralismo as pessoas se creem melhores; no cristianismo nos cremos somente um mais em meio a tantos pecadores. Sim, os que falam a partir de Deus (não em nome dele) na fé cristã são os que se descobriram miseráveis e dentro de sua miséria descobrem perdão para si e para seu próximo. Não é relativizar os princípios cristãos; mas a moral humana, ainda a moral “cristã”. Leva-nos à consciência da maldade humana e da suprema bondade de Deus.

O que se conhece como fé cristã no Brasil está longe disso. É claro, estou generalizando, mas os que não agem assim são exceções e não regra. Geralmente os evangélicos se sentem superiores, o que mostra um desvio grave em sua teologia e em seu caráter. Por isso odeiam a pluralidade, a liberdade e ajudaram a solapar a democracia. Outra vez, não se trata de serem oposição ao governo que eu apoio, mas a pela oposição hipócrita e pueril. São incapazes de olhar para a própria miséria.


Termino lembrando a frase do Irmão Lázaro, deputado federal que é evangélico: “A soberba precede a ruína”, disse ele referindo-se a Dilma. Eu sei disso Irmão Lázaro, eu sei e não vou gastar espaço no texto defendendo a presidenta no que diz respeito a sua humildade. Saindo, entretanto, do campo da política e limitando-me ao evangélico, podemos afirmar que a igreja evangélica acredita tanto em si mesma e em seus líderes que implodiu, está arruinada. E a prova disso é que pessoas como você (Malafaia, Macedo e Valdemiro) que falam em nome de deus e da família não entendem nada sobre a graça e a justiça de Deus que não estão reveladas na moral cristã, mas na cruz de Cristo que prega a falência humana (do evangélico, inclusive) e o amor soberano de Deus. Por isso no primeiro século ela era, a cruz, escândalo para os judeus e agora é escândalo para a própria igreja que deveria nela crer. 

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Por que Deus criou pessoas ruins, existem dois Jesus – um bom e outro mal?


Numa manhã dessa semana Aylan Kurdi, de dois anos foi acordado por seus pais como todos os dias, mas dessa vez lhe disseram que fariam uma viagem, mais uma, mas dessa vez eles estariam mais perto de uma vida melhor. Crianças de dois anos não sabem o que é uma guerra, ainda que vivam em meio uma. A única coisa que Aylan sabia é que estava de viagem com seus pais, mas para isso seria necessária apenas mais uma viagem. “Vamos de barco, não se preocupe, você vai gostar de viajar pelo mar.”- imagino seu pai lhe dizendo.

Sua mãe lhe abriga em seu colo enquanto toma seu irmão de quatro com uma das mãos e segue junto com seu pai em direção ao mar. No caminho os escuta conversando coisas que ele e seu irmão não podem entender, talvez mostre um vira-lata lhes que cruze o caminho e seu irmão o aponta com o dedo da mão que está livre. Aylan, com o entusiasmo que as crianças têm em ver as mesmas coisas como se fosse a primeira vez, balança seu pequeno corpo parecendo festejar um animal que de tão magro e proporcionalmente anacrônico só chamaria a atenção de um adulto para espantá-lo. Aylan não era adulto, celebrava tudo que lhe vinha adiante: as aves, os peixes e até os cães sarnentos...

Seus pais chegam diante do bote; para eles era a o que os levaria para uma vida mais tranquila, sem barulhos de bombas e tiros, sem despertarem na noite para saber se alguma bala entrou no quarto de seus filhos. Para Aylan o barquinho era uma aventura, talvez estivesse debatendo com seu irmão quem seria o capitão daquele navio, pois se caixotes se transformam em naves espaciais, pequenas embarcações também se transformam em lindos navios na mente das crianças.

O barco estava cheio; cheio demais para conseguir cruzar um oceano com ondas verdadeiras. Pouco depois Aylan será fotografado de bruços na margem de uma praia da Turquia; a imagem de seu corpo sem vida cruzaria o mundo e chegaria a milhões – talvez bilhões – de computadores pelo mundo, um deles o meu que logo seria aberto por minhas filhas que, por serem crianças como Aylan e seu irmão, amam explorar o mundo que está diante delas. Mas dessa vez a celebração que elas fazem ao se encontrarem com fotos de família, de praias e de bonecas dava lugar a uma imagem terrível: Aylan, um menino de dois anos estava morto.

A frase que dá título a esse texto foi a pergunta que uma de minhas filhas fez a minha esposa. Uma delas chorou desconsolada – ainda chorava de noite –, a outra ficou com o semblante caído todo o dia. O questionamento delas é o mesmo que todos fazem – ou pelo menos deveriam fazer – e que eu já fiz várias vezes para mim mesmo. Podemos crer num Deus bom num mundo onde milhares de Aylans morrem todos os dias nas favelas da América Latina, nas chamadas Zonas Vermelhas da América Central, nos excluídos da África e da Ásia. Não vemos suas fotos, não nos dão reportagens sérias sobre os assuntos. Quando os jornais falam de uma guerra, nos oferecem somente os números de mortos, mas seus cadáveres estão por trás dessas maquiagens midiáticas.

Essa pergunta é uma das chagas do cristianismo e de qualquer religião: explicar a presença de Deus num mundo apodrecido pela maldade. Mas antes de falar algo sobre isso, gostaria de apontar para três níveis da maldade: metafísico (espiritual), físico e moral. O mal metafísico é o que nos atinge no espírito, uma ausência de Deus sentida pela pessoa que sofre; o mal físico é o padecimento natural do corpo e o mal moral é aquele que humilha nossa humanidade, quando alguém morre não somente por envelhecimento ou adoecimento do corpo, mas quando é ferido, torturado, esganado. O que mais chocou na foto que foi vista por todo mundo é que Aylan sofreu todos esses males e, ainda que a maioria das pessoas não consiga formular essa questão, elas intuem esse mal. Nascido numa região problemática, no pior momento possível, com o status de refugiado negado pelo Canadá, Aylan e sua família foram vítimas do mal em todas as suas dimensões.

Os cristãos servem a um Senhor que também sofreu esses três níveis da maldade. A cruz é essa doença incurável onde Deus – que se fez homem – vai para ser esganado. É na cruz que não somente a maldade do homem é denunciada em sua maior claridade: a humanidade não somente negou a Deus; nós o matamos. Não de qualquer morte, mas com a morte de cruz. Para os romanos a cruz era a maior das humilhações e crueldades – pelo menos é isso que entendemos lendo Cícero. Para os judeus a cruz é sinal de maldição. Jesus na cruz significa Deus sendo humilhado e amaldiçoado por religiosos e gentios, é a maldade em seu nível moral. A cruz é também o lugar onde Jesus se sente abandonado por Deus “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”. Nesse momento há o grande paradoxo do cristianismo: Jesus é Deus abandonado por Deus. Por último, a cruz é um castigo físico.

Na cruz Deus denuncia a maldade humana, nossa bestialidade sem proporções imagináveis que torna o homem o principal caçador do próprio homem (homo homini lúpus, o homem é o lobo do homem). Mas é na cruz que a obra é consumada, somente depois de passar por ela é que nosso Senhor ressuscita e vence o último inimigo que é a morte. Por isso Paulo diz que ela, a cruz, é escândalo para uns e loucura para outros, mas é na cruz (sabedoria de Deus) onde Deus se solidariza com os Aylans que sequer são fotografados e é, através da cruz, que nós, cristãos, deveríamos nos solidarizar também. Ao invés de termos uma agenda focada em encher igrejas, deveríamos nos focar em sermos sal e luz nesse mundo, sermos bons samaritanos que busquem os Aylans pelas beiras dos caminhos. Por que não criar um projeto para refugiados, para dar-lhes proteção? Isso também é fazer missões, isso também é ser igreja. Aliás, se não fizermos isso sequer somos igreja.

Eu não sei por que Deus permite a morte de crianças como Aylan, Jó tentou saber por que Deus permitiu que ele sofresse e no capítulo 38 do livro que leva seu nome a resposta de Deus é não dar-lhe resposta nenhuma, o que se limita a dizer é: “Onde você estava quando lancei os alicerces da terra? Responda-me, se é que você sabe tanto. Quem marcou os limites das suas dimensões? Talvez você saiba! E quem estendeu sobre ela a linha de medir? E os seus fundamentos, sobre o que foram postos? E quem colocou sua pedra de esquina, enquanto as estrelas matutinas juntas cantavam e todos os anjos se regozijavam?” Em outras palavras, “pode o homem saber tanto sobre a vida?” É claro que não.


Quando cheguei à minha casa minha esposa me comentou do que elas haviam visto e logo correram para me perguntar o porquê. Olhei para os olhos aflitos delas e – sabendo que minha esposa já havia conversado bastante sobre o assunto – lhes perguntei: “vocês sabem o que nós estamos fazendo na Guatemala?” – elas me olharam fixamente desviando levemente o olhar, o que indicava que não. Então lhes respondi: “Estamos tentando salvar outros Aylans.” Creio que é essa é a única resposta que podemos dar para esse mal, ainda que não seja satisfatória.