I
Um dos principais argumentos que encontro
de pessoas agnósticas ou ateias que querem interpretar a fé cristã (na verdade
a fé em geral) é que a fé em um mundo além nos conforta das mazelas desse mundo
em que vivemos.
Não tenho nenhuma dúvida referente a esse
conforto diante de catástrofes e perdas pessoais que trazem, de alguma forma,
um sentido ao sofrimento.
No entanto, há outro lado da fé que nada tem a ver com consolo e que está muito mais presente no cotidiano cristão do que o consolo: a angústia. O consolo só é necessário em nossas vidas na medida em que algo ruim nos assola, mas quando tudo vai bem e temos a sensação de que algo nos falta isso já não é mais consolo; é angústia.
II
Aquela ausência de algo que sabemos ou não sabemos
o que é ou que, na verdade, podemos achar que sabemos do que se trata para descobrir,
então, que não se tratava tanto daquilo.
Albert Schweitzer que foi o maior interprete
de Bach de seu tempo e abandonou sua carreira quando estava no ápice para
mudar-se à África para cuidar de pessoas em situação de risco sendo que seu
primeiro consultório foi improvisado em um galinheiro; Paul Brand cuidou de leprosos
na Índia por toda sua vida. Foi dele a descoberta que a hanseníase não causava
o apodrecimento dos tecidos, mas a perda de sensibilidade. Mais tarde ele
escreveu com Philip Yancey o livro A
Dádiva da Dor onde ele faz uma analogia entre a importância da dor na alma
humana comparando com o sofrimento de seus pacientes gerado exatamente pela
falta de dor que tinham e que, por causa disso, se mutilavam.
III
A ideia de uma fé que somente
consola não me é simpática. Não passa, a meu ver, de um sintoma de nossa geração
onde tudo deve contribuir para fazer nossa vida prosaica. Compramos porque nos
alivia o desejo de consumo; não porque precisamos, fazemos sexo para aliviar
nosso desejo de prazer; não porque queremos intimidade. Toda ética de nosso
tempo está baseada no desejo por uma ilusão e com a fé não poderia ser
diferente, pois essa ética refletiu dentro da igreja. Ter fé é deixar que Deus
nos alivie e ao mesmo tempo me garantir que possua minhas ilusões.
Do lado dos que nos analisam de fora
essa parece ser toda a realidade da fé. É uma maneira mais educada de dizer que
os que têm fé buscam esse placebo travestido de metafísica que não resolve
nada, mas no fim das contas alivia o estresse de pessoas frustradas com a
realidade material da vida.
O erro dessa interpretação está no
fato de que ela se resume a um período da história, mas se formos um pouco mais
longe, nos primórdios do cristianismo, onde os cristãos eram perseguidos pelo
império romano e a maioria de seus seguidores era gente simples que por declararem
abertamente sua fé em Cristo eram desterradas, expulsas de suas cidades e
levadas ao martírio. A fé nesse caso não lhes aliviava o sofrimento; o
acentuava. Assim a mesma fé que oferecia o consolo na hora do sacrifício era a
mesma que levava essas pessoas às arenas de execução. Em outras palavras, o
erro de algumas interpretações está não em enxergar o que não existe, mas em
transformar um aspecto de algo em sua totalidade, ofuscando todos os outros
aspectos.
IV
A fé cristã, se bem compreendida,
nos levará à fronteira de um paradoxo de pessimismo (velha criatura) e otimismo
(nova criação). Esse paradoxo não nos permite um otimismo ilusório que perde a
raiz trágica de nossa existência, nem do pessimismo rabugento e tolo porque
apesar de nossa tragédia humana há diante de um reino que nos espera e dentro
de nós um espírito que nos impulsiona adiante. Mas como nem reino nem nova criação
são realidades plenas a fé cristã nos marca com uma angústia incurável porque
de alguma maneira somos o que ainda não somos e participamos de um reino que
ainda não podemos participar em plenitude. Por isso Paulo pode angustiar-se e
ainda descrever aos romanos essa angústia de que ainda não podia ele fazer o
que queria e ainda por cima fazia o que não queria de tal maneira que com a
mente servia a lei e com o corpo o pecado. É esse paradoxo que Aliócha,
personagem de Dostoievski de Os Irmãos
Karamazov, que dedica sua vida a
viver retirado em um mosteiro da Rússia, tem um diálogo com um de seus irmãos que
justifica sua depravação afirmando que há nele o ideal da Madona (alusão à pureza de Maria), mas que sua
realidade interna é a de um inseto (alusão à falta de moralidade e ao domínio
total dos instintos naturais). O jovem Aliócha, para surpresa do irmão, afirma
que ele é exatamente assim, com a diferença que não havia se rendido à vida de
inseto.
É desse ideal que nasce a angústia
que deve mover o cristão. A fé que não nos permite viver com base somente de
nossos desejos, mas que os confronta com a ideal de santidade que aqui
significa muito mais do que santidade em aspecto da moral privada. Maria, pelo
menos para os protestantes, foi virgem para conceber Jesus, mas teve outros
filhos naturalmente. O ideal da Madona é, então, a vida completamente dedicada
a Deus e ao próximo e fazer do próprio corpo esse instrumento de serviço.
Nas palavras de Paulo, “Porque o amor de Cristo nos constrange, julgando nós assim: que, se um
morreu por todos, logo todos morreram. E ele morreu por
todos, para que os que vivem não vivam mais para si, mas para aquele que por
eles morreu e ressuscitou”. (2 Coríntios 5:14,15). Não viver para si, mas para
aquele que por nós morreu é sacrificar nossa agenda de vida pela agenda dele. A
partir de agora não importa meus desejos; mas o dele, não importa meus planos;
mas o dele, não importa é fácil ou impossível amar alguém; mas que ele nos
mandou amar até os nossos inimigos, se queremos ou não perdoar; mas que
perdoemos setenta vezes sete, se queremos ou não ajudar ao próximo; mas que se não
o ajudamos não temos parte com ele.
V
A morte de uma pessoa querida
acontece ou acontecerá muito menos do que nosso cotidiano onde nossa nova realidade (viver para ele) está à
prova. Em outras palavras, na fé cristã há menos consolo e mais aflição. Isso
porque o núcleo de nossa fé é “amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo
como a nós mesmos”. Amar a Deus sobre todas as coisas significa que Ele deve
ser o centro de nossa existência e como centro, nele organizamos todas as
coisas de nossa vida. Deus só pode ser Deus se Ele é mais importante e maior do
que todas as coisas, mas eu só compreendo esse Deus se, junto, compreendi que
eu e o próximo temos a mesma importância diante dele. Não há como amar a esse
Deus e odiar ao próximo, quem crê assim é mentiroso (1 Joao 4:20). É mentiroso
porque Deus é amor e, assim sendo, a ação dos que o servem é uma reação de amor
porque esse Deus-amor é o centro de
nossa existência.
Cada dia eu descubro mais angústia
na fé cristã e cada dia luto para que essa nova criatura vença esse inseto que
vive em mim, cada dia descubro que ser cristão – cristão de fato – não é fácil e cada dia descubro que essa
angústia é uma benção de Deus que acompanha todos os que querem esse algo mais
que nos falta e que está em Cristo por quem seremos em plenitude quando tudo
estiver consumado. Até lá, que a ausência do que deveríamos ser nos ajude a
ser.